quarta-feira, 3 de abril de 2013

Visitante



Cruzo o portão de aço da sacada
Um som divino me conduz ao teu recinto
O cheiro férreo me embriaga os sentidos

Conhecido

Ah! Ouço queimar entre o som metálico
O ressoar suave do teu peito
Dou mais um passo
O odor se impregna
És tu a escultura alva que pinta os lençóis de seda?
Serias tu a me chamar tão cedo?
Espreito sob a vela fúnebre do teu berço
É bela e triste a tua figura
Tuas formas brancas, ainda vigorosas
O rubro das maçãs escorrendo pelos dedos
Olhos orvalhados cintilando sob a prata etérea
Um engodo aos olhos
Meu olhar faminto corre pelas margens do teu leito
Espero pelo suspiro que vem a tragar-te o peito
Então tu me olhas
O prata a queimar as orbes cerúleas
Sorve o ar ao teu redor, mas não absorve
Sorrio
Te toco a face, ainda, enrubescida, quase indecorosa
Dos olhos febris vem o choque
Mas não eras tu a me chamar, sem pronunciar um nome?
Abro o sorriso em esgar e antes do pedido
beijo tua boca com fome de amante
Teus braços me envolvem, fracamente
Do mel que goteja dos dentes sugo ávida
O néctar que tu mesma deste à mercê
Um último espasmo e tua luz se apaga
A massa maculada escorre até embater na velha cama
Deixo o quarto lambendo os beiços, satisfeita.


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Em Cena

Em cena

Desde pequena era estrela, deslumbrava.

Boneca, era como lhe chamavam. Movendo-se sobre um palco onde os holofotes a mantinham sempre iluminada.

Ela adorava o singelo apelido. Bonecas eram sempre lindas, adoradas em suas estantes envidraçadas.

Ela não era apenas mais uma para permanecer em estantes, furtando olhares. Uma boneca como ela era desejada. Precisava ser exposta, precisava ser controlada. 

Sorria. Brilhava. Repetia suas falas.

Não viu as cordas atadas, uma à uma, cega pelo deslumbre.

Em meio à cena em seu palco de vidro, sentiu-se erguer sem vontade. No rodopio involuntário, perdeu o sorriso que lhe rasgava a boca. Finalmente sentiu as cordas.

Um único gesto seu: sob o holofote cedeu, expondo a boneca quebrada.

Ela era uma boneca, que agora mantinha os olhos baixos para não tropeçar nos cordões.


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Encontro no asfalto.






Encontro no asfalto


Na rua cravejada de latas vazias, com ladrilhos pontilhados por milhares de passadas sucedeu o ocorrido. Ele vinha da Praça Dom Feliciano, a pasta em mãos, enquanto desviava dos obstáculos andantes que também corriam contra o relógio. Ela, saindo da Galeria Mauá e de uma longa entrevista, tentava se equilibrar na calçada esburacada com os saltos gastos, transpirando debaixo do calor infernal. Não se conhecem, ambos são da mesma cidade, passam frequentemente pelos mesmos lugares, pelos mesmos rostos, compartilham de gostos e desgostos, mas tem vidas singulares. Sofrem pela greve dos bancos, pelas trocas de temperatura cada vez mais frequentes, pela falta de apreço da humanidade e pela ausência de um acalento no final do dia.

É na hora de atravessar a rua que a mágica acontece.

Os dois corpos se chocam na passagem do ônibus e, no descuido, o asfalto vira salão de dança com as buzinas orquestrando a sinfonia. Foi um quê de surpresa no quase abraço. As mãos dele ainda pousaram nas costas dela procurando equilíbrio, nos pés que se esbarraram, descompassados, sem completar o caminho. As mãos dela o seguram pelos ombros, apenas por um segundo. O tempo de um suspiro. Não se olham. Segue-se a rota, no compasso marcado, cada um no seu caminho. Presos na rotina apertada mal dá espaço para aproveitar a brisa fresca do terminal, imagina o calor humano.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Cenário de solidão

            As chaves e a lingueta da porta foram a dupla que acordou o pequeno apartamento.
          
          Ela cruzou a porta de madeira escura e a fechou com um movimento único. Deixou estar mais um segundo com a chave entre os dedos até elas caírem em um tilintar tão sonoro entre a mesa de cristal que acordou o resto do apartamento que ainda dormia, acostumado à quietude.

          Andou até a cozinha, os passos ficando mais lentos, sem aquela correria desenfreada que se desperta na rotina empresarial. Os pés começaram no Prada e terminaram no linóleo, os companheiros caídos nem reclamaram o descaso. Todo mundo precisa de um descanso.

          A luz da geladeira surpreendeu a penumbra.
          
          Um maço de alface, cebolinha, o leite quase no fim e aquela última garrafa de vinho que ela deixou gelar para uma ocasião especial.

          Violou o rótulo, fez cuspir a rolha e meteu a mão na cristaleira. As taças observaram com curiosidade enquanto a caneca se tingia de um rubro respeitoso. Uma delas questionou: “lugar de vinho não é na taça? Por que colocar em um lugar tão atípico?” Pra enganar a dor.
          Vinho na taça é desforra, comemoração, mandar a solidão às favas. Ela queria sua companhia. Pelo menos pra sentir-se perto de alguma.

           Os pés novamente entraram em movimento, deixando a penumbra da cozinha pra trás e as taças emudecidas, trocou a madeira do assoalho pelo carpete da sala e novamente trocou pelo tecido de organza que adornava o sofá.

            Belo, mas desconfortável. Foi assim que o tecido encontrou o carpete e permaneceu assim, esperando o próximo movimento dela, que só sabia levar a caneca aos lábios e de volta ao estômago, abrir e fechar os olhos tediosamente, e fitar a luz da rua incidir no teto branco.

            Do lado de fora da janela uma tempestade se aproximava. Ela conseguia sentir no ar a chuva se encaminhando - fresca, límpida, purificante - através da brisa que balançava as cortinas. Como ela queria ter forças para se levantar e acompanhar os pingos de chuva caindo contra a vidraça da sacada. Agora, em seu espaço, uma letargia suave e bem-vinda recaia sobre ela, desfazendo aos poucos os nós que a mantiveram acordada nas últimas noites.

             Ela não sentia necessidade de ligar as luminárias. Elas a fariam encarar o grande espelho que repousava sobre a mesa de jantar e era o ponto que ela mais queria evitar naquele momento. Enfrentar a si mesma estava mais difícil do que se lembrava nos últimos tempos.

              O silêncio que embalava o apartamento parecia vir como um ressonar suave e constante, que lhe induzia ao sono. Era uma sinfonia cálida de tons e cheiros, que combinava a brisa que rompia das cortinas, antecipando o cheiro de chuva e os passos do vizinho - que ela nunca vira, mas conhecia seus horários e hábitos por dividirem um teto.

               Ela respirou fundo, querendo sentir mais fortemente o cheiro do amaciante que brotava das fronhas das almofadas, contudo foi um odor estrangeiro – mas dolorosamente conhecido – que invadiu-lhe as narinas. Sabia que a fragrância se entendia muito além de sua camisa de seda, mas ela não tinha força o suficiente para mover-se até o Box e esfregá-lo para longe. Ela sempre se apegava ao que lhe fazia sofrer.


É tão tarde para tomar a atitude certa? Ela pensou, tingindo os lábios mais uma vez.


               Foi o último pensamento antes de as pálpebras começarem a pesar demais sobre os olhos. As cortinas pareceram acompanhar seu movimento, movendo-se mais fracamente contra o vento que batia de tempos em tempos.

               E ela continuou deitada, enquanto as gotas de chuva molhavam a vidraça e o apartamento, aos poucos, a vestia com sua quietude de sempre; seus olhos fechando enquanto o resto ao ser redor voltava a adormecer.