As chaves e a lingueta da porta
foram a dupla que acordou o pequeno apartamento.
Ela cruzou a porta de madeira
escura e a fechou com um movimento único. Deixou estar mais um segundo com a
chave entre os dedos até elas caírem em um tilintar tão sonoro entre a mesa de
cristal que acordou o resto do apartamento que ainda dormia, acostumado à
quietude.
Andou até a cozinha, os passos
ficando mais lentos, sem aquela correria desenfreada que se desperta na rotina
empresarial. Os pés começaram no Prada e terminaram no linóleo, os companheiros
caídos nem reclamaram o descaso. Todo mundo precisa de um descanso.
A luz da geladeira
surpreendeu a penumbra.
Um maço de alface, cebolinha, o
leite quase no fim e aquela última garrafa de vinho que ela deixou gelar para
uma ocasião especial.
Violou o rótulo, fez cuspir a
rolha e meteu a mão na cristaleira. As taças observaram com curiosidade
enquanto a caneca se tingia de um rubro respeitoso. Uma delas questionou:
“lugar de vinho não é na taça? Por que colocar em um lugar tão atípico?” Pra
enganar a dor.
Vinho na taça é desforra,
comemoração, mandar a solidão às favas. Ela queria sua companhia. Pelo menos
pra sentir-se perto de alguma.
Os pés novamente entraram em
movimento, deixando a penumbra da cozinha pra trás e as taças emudecidas,
trocou a madeira do assoalho pelo carpete da sala e novamente trocou pelo
tecido de organza que adornava o sofá.
Belo, mas desconfortável. Foi
assim que o tecido encontrou o carpete e permaneceu assim, esperando o próximo
movimento dela, que só sabia levar a caneca aos lábios e de volta ao estômago,
abrir e fechar os olhos tediosamente, e fitar a luz da rua incidir no teto
branco.
Do lado de fora da janela uma
tempestade se aproximava. Ela conseguia sentir no ar a chuva se encaminhando -
fresca, límpida, purificante - através da brisa que balançava as cortinas. Como
ela queria ter forças para se levantar e acompanhar os pingos de chuva caindo
contra a vidraça da sacada. Agora, em seu espaço, uma letargia suave e
bem-vinda recaia sobre ela, desfazendo aos poucos os nós que a mantiveram
acordada nas últimas noites.
Ela não sentia necessidade de
ligar as luminárias. Elas a fariam encarar o grande espelho que repousava sobre
a mesa de jantar e era o ponto que ela mais queria evitar naquele momento.
Enfrentar a si mesma estava mais difícil do que se lembrava nos últimos tempos.
O silêncio que embalava o
apartamento parecia vir como um ressonar suave e constante, que lhe induzia ao
sono. Era uma sinfonia cálida de tons e cheiros, que combinava a brisa que
rompia das cortinas, antecipando o cheiro de chuva e os passos do vizinho - que
ela nunca vira, mas conhecia seus horários e hábitos por dividirem um teto.
Ela respirou fundo, querendo
sentir mais fortemente o cheiro do amaciante que brotava das fronhas das
almofadas, contudo foi um odor estrangeiro – mas dolorosamente conhecido – que invadiu-lhe
as narinas. Sabia que a fragrância se entendia muito além de sua camisa de seda,
mas ela não tinha força o suficiente para mover-se até o Box e esfregá-lo para
longe. Ela sempre se apegava ao que lhe fazia sofrer.
É tão tarde para tomar a atitude certa? Ela pensou, tingindo os lábios mais uma vez.
Foi o último pensamento antes de
as pálpebras começarem a pesar demais sobre os olhos. As cortinas pareceram
acompanhar seu movimento, movendo-se mais fracamente contra o vento que batia
de tempos em tempos.
E ela continuou deitada, enquanto
as gotas de chuva molhavam a vidraça e o apartamento, aos poucos, a vestia com
sua quietude de sempre; seus olhos fechando enquanto o resto ao ser redor
voltava a adormecer.